Descompressão

IMG_1185O ritual de todos os dias se repetiu pela última vez: acordar antes do sol nascer, observar as montanhas, calçar as botas pesadas. Tudo já em ritmo de piloto automático. A mochila já se ajeita sozinha e caminhar está parecido com pegar o carro para ir trabalhar. Os bastões tão úteis em vários momentos são postos de lado. O ritmo de caminhada também é mais forte e com muito menos pausas. A trilha é praticamente só descida, cortando vilarejos e plantações. As horas finais são uma espécie de zona de descompressão…o caminho antes estreito, agora se alarga e se transforma em uma estrada de terra margeando um rio. Aos poucos surgem ônibus coloridos, jeeps 4×4 e as barulhos da civilização.

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Os sinais de civilização indicavam que o trekking estava chegando ao fim.

Caminhamos mais um pouco e então pegamos um táxi para Pokhara, onde tudo começou. Forma singela de terminar o trekking. Depois de duas horas chacoalhando, eu reencontrava o meu hotel. Me pareceu suntuoso. Um banheiro só para mim, com água quente, tomadas para recarregar o que eu quisesse e wi-fi. Valeu…

Número 2

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Sinalização indicando que aquela é uma área onde não se deveriam fazer necessidades básicas.

Depois de dias de adaptação ao tempero da comida, fuso horário, poucas horas dormidas e esforço físico contínuo, meu corpo resolve me pregar uma peça e no meio da caminhada sou obrigado finalmente a utilizar um banheiro natural. Lá se foi a minha virgindade …agora o trekking ficou raiz de verdade.

Eis que percebo que a lei de Murphy é válida em qualquer lugar do mundo… Sentadinho na moita eis que vejo um senhor nativo subindo a trilha…Tanto lugar do mundo para ir no banheiro…aquela imensidão de natureza e vai aparecer alguém! Quando penso no que vou fazer (não que houvesse muito), percebo que o homem bate uma varinha de um lado para o outro, tateando o caminho. Ele era cego e pude concluir minhas atividades em paz.

Ir ao banheiro ao ar livre não é um grande problema na região. Pelo contrário. É hábito tão estabelecido que ao longo do trekking existem alguns trechos com placas que indicam que aquela é uma “defecation free zone”por estar perto de uma área sagrada. Há também uma preocupação em educar a população a utilizar o  banheiro por questões sanitárias. Naquele momento eu não estava em zona sagrada e não tinha aderido a um hábito local…Era desespero mesmo.

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A paisagem da qual já começo a sentir saudades

Recuperado e mais leve, volto ao ritmo de marcha…Uma caminhada de umas três horas nos leva ao ao topo de um morro (depois desta viagem nada com menos de 6000m receberá a denominação de montanha) com uma vista espetacular da Annapurna e seus vizinhos. As montanhas que no começo pareciam todas iguais, agora se transformaram em companheiras com personalidade própria.

O trekking está chegando no fim. Acaba no dia seguinte… e em minha já tradicional espelunca noturna, vou dormir pensando que sentirei saudades da rotina e da experiência.

Rotina de monge

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Nascer do sol nas montanhas. Hábito incorporado ao dia a dia

Depois de 5 dias de caminhada apareceu uma bolha na sola do meu pé direito. Nada sério mas recorro ao kit de primeiros socorros elaborado pela minha esposa, que tem tanta coisa que acho que foi montado para a eventualidade de eu ter que realizar um transplante cardíaco na altitude. Decido que no final da viagem deixarei todos estes suprimentos (remédios, band aids, gaze, esparadrapo) para a população. Em caso de um novo terremoto no Nepal, a Cruz Vermelha já terá material para começar o atendimento aos nativos.

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O reencontro com os vilarejos no caminho de volta.

A minha alimentação tem sido bastante variada. Pão nepalês no café da manhã e para almoço e jantar: uma sopa (vegetais, tomate,alho ou cebola) que poderíamos chamar de água quente aromatizada, arroz com curry de vegetais ou arroz frito com vegetais ou Momo que é um pastelzinho cozido no vapor recheado de ? Vegetais. Exceto por um ovo que misturaram com o meu arroz, já se vão dias sem proteína.

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Gato por lebre ou búfalo por yak

Já estamos no caminho de volta e na medida em que descemos começam a reaparecer vilarejos, o que deixa o caminho mais divertido. É uma paisagem rural e vamos caminhando entre plantações. Alguns búfalos pelo caminho suprem o meu gap de não encontrar os yaks. A rotina já está muito estabelecida e o corpo se acostumou aos exercícios. A barba já cresceu e as calças começaram a cair com o spa forçado. Incorporei um toque de despertar que me permite ver as estrelas e esperar o sol nascer atrás das montanhas. Posso dizer que estou vivendo uma rotina frugal e espartana. Algo próximo de um monge beneditino…

Annapurna, sua linda

A noite me traz lembranças de infância em Campos de Jordão. Opção cruel entre fazer xixi na cama ou levantar do sleeping bag em um frio de rachar e além de tudo ter que procurar não apenas o banheiro mas o meu bigulinho totalmente encolhido a -5C, em um lugar sem nenhum aquecimento.

Acordo antes do sol nascer. Se o céu estrelado é espetacular, o reflexo dos primeiros raios de sol batendo no topo das montanhas não fica devendo nada.

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Reta final até Annapurna

Começamos a andar. Hoje será rápido. São pouco mais de 2 horas de subida constante para chegarmos ao acampamento base. 4200m.

Uma curva para cá, outra para lá e Annapurna surge inteira na nossa frente. Linda, deusa, majestosa. Mais de 8000m, uma das dez montanhas mais altas do mundo. Avisto o memorial para todos aqueles que morreram tentando escalá-la. A montanha tão pacífica e soberana é aquela que proporcionalmente mais mata alpinistas. Desde 1950, quando foi escalada pela primeira vez, foram poucos os que tentaram atingir o seu cume (menos de 200), o problema é que cerca de um terço não voltou para casa. Para efeito de comparação, menos de 4% dos alpinistas que se aventuram no Everest acabam morrendo.

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Memorial para os alpinistas que morreram tentando escalar Annapurna

Estatísticas e métricas a parte eu sigo em frente, caminhando em direção a um glaciar que começa kilometros acima. Estou sozinho. Fico sentado observando. O silêncio é total, só quebrado pelo barulho do gelo que se parte em algum lugar desconhecido. O céu é azul de cartão postal. Sempre sonhei vir para um lugar assim. Acho que esta é a catedral da minha religião. Natureza bruta que te coloca em seu devido lugar, com a sua merecida insignificância. Fotos e vídeos não captam como o lugar é bonito. As nuvens começam a aparecer, lembrando que tudo aquilo também muda e que era hora de voltar. Fica na memória.IMG_3901.jpg

Soletre: Machhapuchhere

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Rumo a Machhapuchhere

O objetivo agora é chegar no Machhapuchhere Base Camp e a caminhada será morro acima. Embora Machhapuchhere, tenha o seu pico a 7000 m, seja uma montanha sagrada para os locais e portanto proibida para escalada, neste trekking ela é tratada como uma espécie de primo pobre do Annapurna. Oscar de montanha coadjuvante. Ninguém fala na coitada e ela deve ir para a terapia, sofrendo de complexo de rejeição. Como o nome da montanha é impronunciável, convencionou-se chamá-la de Fish Tail, ou rabo de peixe. O apelido deve ter vindo de algum mochileiro em um momento de delírio da altitude potencializado por alguma droga ilícita, porque de peixe a montanha não tem nada.

A vegetação que antes parecia a mata atlântica, vai escasseando e mudando de cor, primeiro aparece uma floresta de bambus, depois uma floresta de plátanos e finalmente apenas vegetação rasteira. A paisagem de montanhas é incrível e começa a ser companhia constante no trekking. Talvez deslumbrado demais, consigo a proeza de escorregar em uma pedra e mergulhar em um riacho gelado. Cena ridícula, perigosa e aquele pensamento de “o que estou fazendo aqui ?” veio a tona. Lembro de alguns amigos que desconfiados do meu estado atlético disseram que se encarregariam de buscar as minhas cinzas caso eu ficasse pelo Nepal…quase vieram.

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Banho não programado

Roupa trocada e seco, continuamos. A trilha é cada vez mais vertical e a caminhada vai ficando mais lenta também por conta da altitude. Estamos acima de 3000m. Meu guia me recomenda que eu tome chá de alho na próxima parada para ajudar na aclimatação. Não sei se foi isto o responsável por eu não ter sentido nenhum sintoma mas me garantiu um bafo de leão por horas.

Começa a garoar, a garoa vira uma neve leve e a montanhas ficam escondidas atrás das nuvens. Baixa um fog gigante.

Chego na hospedaria que já está a 3700m. Sou agraciado com um quarto a ser dividido com um senhor búlgaro que tem aparência de espião da KGB. Hora de esquecer as vaidades e observar em volta as montanhas soberanas. O visual é maravilhoso. O fog dissipa, o céu tem tantas estrelas como carros no trânsito de São Paulo e o nascer do sol ilumina os picos nevados. Estou onde eu queria estar.

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Uau…

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